Se você mora no Brasil e tem uma rotina atribulada existe uma boa chance de que você esteja por fora do Hecatombe nos mercados financeiros que ameaçam levar o sistema bancário mundial, literalmente, pelo ralo. Sem exageros, os esforços para conter são grandes e é provável que segurem o pior, mas está acontecendo, agora, e quase não há foco do noticiário nisso.
O problema de hoje começa em 2008, na grande crise financeira, onde o remédio para evitar o colapso do Dólar foi a mistura tóxica de juros artificialmente baixos (juros reais negativos) e o chamado Quantitative Easing (Impressora de dinheiro ligada no modo hard).
Tentando construir uma analogia, você é médico e seu paciente está viciado em crack. O crackento enche muito menos o seu saco estando louco do que sóbrio e sofrendo crise de abstinência, e você tem a brilhante ideia de dar um suprimento infinito de crack para ele.
Eis que, passados 15 anos (diga-se de passagem muito mais que o previsto), o paciente está prestes a morrer com o cérebro derretido. O paciente em questão é o mercado.
Desculpem-me as metáforas ridículas, mas a tentativa é de simplificar o entendimento para quem não acompanha a coisa de perto e quando lê de fora precisa decifrar o que venha a ser um “Enhanced liquidity swap agreement”… Coisas confusas e feitas para não serem entendidas, logo, vou persistir na metodologia de explicar a crise como se o leitor fosse um golden retriever…
Uma breve história recente da taxa de juros nos EUA
No final de 2015 o cheiro das coisas começou a ficar ruim (o crackento tava morrendo de overdose) e o FED anunciou o fim do QE, que iria começar a subir os juros da forma como a teoria manda e reduzir o ritmo da impressora. Os juros foram subindo beeeemmmm devagar para tentar não entornar o copo, mas as primeiras rachaduras no sistema começaram a aparecer e em 2019 esse movimento foi revertido antes que algum nome significativo caísse, e no ápice da hipocrisia, Jerome Powell, presidente do FED veio à público dizer que a nova queda dos juros não era um novo QE (o viciado incomodou demais e voltamos dar pedras para ele).
Em 2020, usando a pandemia como muleta o FED zerou os juros novamente e drogou o viciado como nunca, perdão, injetou dinheiro na economia como nunca visto na história do experimento das moedas fiduciárias.
Foi nesse momento em que o mercado se anestesiou de vez. Nosso viciado aumentou a dose e a frequência e estava crente que isso iria durar para sempre.
O mercado achou que os juros seriam eternamente baixos, que a teoria da oferta e demanda não fazia mais sentido e por esse motivo não haveria inflação relativa ao excesso de dinheiro.
YOLO – Só se vive uma vez
Como consequência dessa percepção (obviamente errada), durante a grande farra das impressoras, comprar títulos do tesouro americano com vencimentos longos (10 ou 30 anos) pagando juros em torno de 0,25% pareceu uma excelente ideia para bastante gente, além de que certas instituições são obrigadas por regulamentação a comprar o “título com menor risco do mundo” em seus mandatos fiduciários (regras do jogo dos institucionais).
As doses cavalares de dinheiro injetados no sistema demoraram, mas, como o esperado, geraram o problema da inflação. É meio que parecido com a garrafa de ketchup… Você fica batendo no fundo da garrafa e o ketchup não sai, a hora que começa a sair não para mais.
Enfim, o FED (único banco central relevante do mundo) começou a ter que lidar com a inflação que insistia em não dar as caras durante anos de QE.
Politicamente falando, até que ela veio em bom momento, com convenientes bodes expiatórios como Covid e guerra da Rússia que tiveram pouca ou nenhuma influência na realidade da inflação, ficou fácil construir uma narrativa que não apontasse para o excesso de liquidez (impressora infinita), afinal, Putin é o grande culpado.
Com a inflação oficial (aquele gol de mão) em 8% ou 9% o FED estaria confortável para ser duro em sua narrativa de austeridade e luta contra o dragão da inflação, pois com o juro próximo de zero, é fácil subir e ao mesmo tempo manter o juro real negativo. E começou o ciclo de aperto (volte ao gráfico lá de cima).
Mas você se lembra de nosso viciado que se entupiu de crack, quer dizer, de títulos do tesouro americano com vencimentos longos?
Com os juros lambendo a casa dos 5%, o que acontece com o valor de mercado daquele crack, quer dizer, título? Ele derrete. O valor de um título de 30 anos pagando 0% é muito menor do que o valor de mercado de um título de 30 anos pagando 5%, logo, se eu quiser me livrar daquele que paga 0% eu tenho que vender com um enorme prejuízo, e é aí que chegamos à realidade atual.
Entendendo a crise de 2023
No balanço dos bancos americanos, a droga, quer dizer, títulos do tesouro americano entram por valor de face (aquele pelo qual foram comprados) e não de mercado (aquele pelo qual se venderia se precisar do dinheiro hoje).
É como seu imposto de renda. Aquele Porsche 911 Carrera que você pagou 1,2 milhões de Reais em 2017 vale hoje 600 mil, mas na sua declaração, até você vender, vai constar como 1,2 milhões.
E os balanços de bancos e fundos de pensão estão cheios títulos com valores irreais garantindo seus índices de liquidez de forma artificial, e com muita gente rezando para que os clientes não saquem sua grana, pois se precisar da liquidez…
Se por algum motivo o banco precisa de liquidez, ele precisa se desfazer de seus títulos com prejuízo, e isso, no mês de março, levou o Silicon Valley Bank (16º maior banco dos EUA) à bancarrota.
Não bastando o SVB ir pro saco, a queda do SVB acendeu um holofote imenso sobre esse problema, e foi encontrado praticamente 1,7 Trilhão de Dólares de diferença entre valor declarado no balanço e valor de mercado no patrimônio dos bancos, ou seja, dinheiro de banco imobiliário que se precisar ser sacado, simplesmente não existe.
E a notícia começou a correr, e de repente, o cliente dos bancos regionais ficou com medo e houve a temida corrida bancária.
Está havendo um misto de clientes que estão com medo do banco pequeno e estão indo para o banco grande e uma porção de clientes de todos os bancos (pequenos e grandes) que entendeu que seu saldo está em risco, e que, se é pra correr risco sendo remunerado em 0,5% ao ano em uma banco ilíquido e insolvente, melhor comprar títulos curtos do tesouro rendendo 5% ao ano por conta própria, e é assim que se encontra o mercado enquanto escrevo esse texto, numa segunda feira dia 27/03/23.
Até o presente momento, afundaram o Silvergate (EUA), SVB (EUA), o Signature Bank (EUA), o Credit Suisse (Suiça) e o First Republic Bank (EUA) e cambaleia nada menos que o DB (Alemanha)…
E o remendo feito até o momento
A solução dada para o problema foi a de sempre, imprimir dinheiro.
O FED imprimiu 100% dos depósitos do SVB e do First Republic Bank e criou uma linha para dar dólares usando os próprios títulos do tesouro americano como garantia, adivinhem, pelo valor nominal, e não pelo valor de mercado.
Ao mesmo tempo, de forma inédita, na quarta feira dia 22, ele subiu os juros para sinalizar que está combatendo a inflação.
São políticas antagônicas, em uma semana o FED reverteu 50% da redução de balanço que levou 10 meses para executar, como pode ser visto no gráfico abaixo.
É boato inclusive que o FED e o Tesouro americano estariam dispostos a imprimir para bancar 100% dos depósitos de todos os bancos (o que só de ser cogitado é uma sandice).
Na Europa, o Credit Suisse foi varrido para baixo de seu maior concorrente (UBS), numa escandalosa socialização de prejuízos jamais vista a fim de preservar os amigos do Rei.
O números de USD tomados da nova linha de crédito com o FED mal-e-mal cabem no gráfico, que precisa de uma escala logarítmica para fazer sentido, como você pode ver abaixo.
É a primeira vez na história do experimento do dinheiro fiduciário (desde 1971, com queda do padrão ouro) que estamos vendo os juros subirem ao mesmo tempo que a impressora de dinheiro trabalha de forma desenfreada.
E o que vai acontecer?
Ninguém sabe o que vai acontecer, mas podemos fazer mais uma analogia…
Imprimir e subir juros ao mesmo tempo é o mesmo que tomar duas garrafas de vodka e pegar um Mustang com controle de tração desligado para dar um rolê no centro da cidade, pode dar tudo certo e não acontecer nada, mas todos sabemos a probabilidade maior dos acontecimentos.
Soa como desespero, tem cor de desespero, tem cheiro de desespero, textura de desespero e o pior…
Há três finais de semana seguidos que contra os gráficos acima (fatos), autoridades dos EUA e Europa precisam emitir declarações de que o sistema bancário é seguro e robusto, seguro e robusto, seguro e robusto.
É uma insistência patética. Apenas para documentar a honestidade dessa turma, lembre que o Credit Suisse foi assim:
– 15 de Março por volta das 14:00 – CEO vai a público dizer que Credit Suisse é “Seguro e Robusto”;
– 15 de Março por volta das 20:00 – BC Suíço emite nota dizendo que em caso de extrema necessidade, poderá eventualmente ajudar com liquidez;
– 16 de Março por volta das 8:00 – BC Suíço garante CHF 54 Bilhões de liquidez para o Credit Suisse;
– 19 de Março (DOMINGO) – BC Suíço anuncia que liquidaram o Credit Suisse e entubaram o lixo no balanço do UBS.
E é essa a turma que está tentando segurar as pontas com o mantra “seguro e robusto”. Agora existem dois times.
O time dos financistas engravatados batendo palmas e sorrindo pela agilidade e qualidade das ações tomadas diante da crise para evitar o contágio (independente das consequências futuras de continuar fornecendo drogas ao viciado).
O time dos lunáticos que entendem o resultado óbvio que religar as impressoras de dinheiro e subir juros simultaneamente, que dar crédito à valor de face para títulos podres é um band-aid de marca genérica e que mesmo que não seja dessa vez, o colapso passou perto e o resultante é um sistema pior, inflado e muito mais frágil, nem tão seguro e robusto assim.
Choose your fighter
Você agora precisa escolher entre se está com o time A e compra um CDB de 140% do CDI em Reais com Brasil à deriva e com sistema bancário internacional flertando com o colapso ou se diversifica em um ativo sem risco de contraparte governado pela matemática incorruptível.
Apenas como observação, o Bitcoin sobe mais de 40% desde o início da crise bancária.
Escolha com sabedoria.