Hoje é dia de simplificar um conceito econômico que você escuta em seu dia a dia e não sabe exatamente de que se trata.
Margaret Thatcher, ex-primeira-ministra do Reino Unido, gostava bastante da analogia entre o orçamento familiar e o orçamento do governo.
Não é ciência de foguetes dando ré, é uma analogia que uma criança de 10 anos entende, e se você não foi doutrinado pelo método de Paulo Freire, você também não sofrerá para entender.
Ela argumentava que, assim como uma família não pode gastar mais do que ganha indefinidamente sem enfrentar consequências financeiras graves, o mesmo princípio deveria aplicar-se ao governo. Viu só? Nem dói…
Mas os acadêmicos discordam, porque são financiados pelos políticos, que precisam discordar (mesmo que não discordem) para poder gastar indefinidamente, e aí surgem absurdos.
Para se normalizar um absurdo, ele surge no meio acadêmico. Turma em cima de turma é formada e doutrinada acreditando que o absurdo é perfeitamente normal. Esses profissionais entram no mercado e daqui a pouco o que era absurdo é falado corriqueiramente e a imprensa começa a noticiar o absurdo com naturalidade.
O absurdo em questão chama-se Superavit primário.
Superavit primário é a soma de receitas menos despesas do governo, excluindo os juros da dívida e despesas com “investimento”.
É um conceito que se presta a um único propósito, mascarar a realidade de forma a abrir espaço para mais gastos por parte do governo.
Defensores do conceito dizem que ele serve para verificar a saúde do governo e compará-lo aos seus pares sem os efeitos da dívida, afinal, se a iniciativa privada pode se esconder a maquiar balanços através do EBITDA, por que governos não podem usar do mesmo artifício?
Do ponto de vista prático, juros são devidos. Ou você paga, ou você rola, ou você dá calote. Não existe essa lenda de desconsiderá-los.
Em um exemplo didático, suponha que você tem um cartão de crédito e um salário de 10 mil Reais.
Nesse mês, você ganhou 10 mil de salário, teve 8 mil de despesas e gastou 10 mil no limite do cartão de crédito para reformar sua casa.
Seu superavit primário foi de 2 mil, pois o “investimento” na reforma é infraestrutura de longo prazo, não entra na conta. Sobrou dinheiro!
No mês seguinte, você recebeu os mesmos 10 mil, teve os mesmos 8 mil de despesas, pagou 1 mil de parcela mínima do cartão no mês anterior. Assim, você ficou devendo 9,9 mil considerando os juros do mês anterior e meteu mais 10 mil no limite, novamente em um novo “investimento”, dessa vez a personalização do carro, uma importante decisão de longo prazo…
Parabéns, seu superavit primário é de 2 mil Reais. Sobrou dinheiro, de novo, bom trabalho! Nem as dívidas do limite do cartão do mês anterior e nem os juros dessas dívidas entram na conta.
No terceiro mês, você viu que a coisa estava esquisita e não usou mais limite de cartão para novos “investimentos”. Você recebeu 10 mil, gastou 8 mil, pagou 2 mil de parcela mínima do cartão referente aos meses anteriores, mas considerando os juros em cima da dívida anterior, agora você ficou devendo 19,8 mil no limite.
Parabéns, seu superavit primário é de 2 mil Reais. Você é austero e sabe como gastar seu dinheiro.
Agora no quarto mês, você recebeu seus 10 mil gastou o 8 mil de sempre, mas como os 2 mil que sobram não são suficientes para o pagamento da parcela mínima do seu cartão do mês anterior, você inteligentemente pega um novo cartão de crédito com outro banco.
Você usa o novo limite para inteirar a parcela mínima do cartão do mês anterior e de quebra mete mais 10 mil de dívida em cima, ou melhor, realiza um novo e importante investimento em peitos de silicone para sua namorada, com juros ligeiramente superiores aos do cartão anterior.
Você continua sendo uma máquina de responsabilidade fiscal, nesse cenário, seu superavit primário continua sendo de 2 mil reais. Bom rapaz! Sabe gerenciar o dinheiro!
Nessa altura do campeonato você já entendeu como funciona a métrica oficial utilizada para ver a saúde financeira do governo.
Toda vez que você escutar painho esbravejando que para o mercado tudo é gasto e quando na verdade é investimento, lembre-se dos maravilhosos seios da agora ex-namorada…
Tem um segredinho perverso aí… Você como pessoa física em pouco tempo terá que enfrentar a dura realidade ao perceber que os bancos não lhe dão mais limite, pois você não tem como pagar a crescente bola de neve a não ser que passe a ganhar mais, gastar menos ou ambos.
Travestido de segurança, o fato de o governo poder imprimir para pagar suas dívidas faz com que as pessoas simplesmente ignorem o risco e “deem limite” eterno para os cartões de crédito do governo através de suas emissões de dívida.
Cada vez que um fundo de pensão compra título do tesouro, ele está dando limite para o governo. Cada vez que a pessoa física compra um Tesouro direto, ela está dando limite para o governo.
E aumentar a dívida nada mais é que imprimir dinheiro sem a necessidade de imprimir dinheiro. Quando os lunáticos do Bitcoin falam que os governos estão imprimindo dinheiro é desse esquema perverso de aumento da dívida infinita que estamos falando.
Qual é o problema? O problema é que o caldo do feijão está ficando tão ralo que já não pode mais ser chamado de feijão.
Imprimir dinheiro (independente do mecanismo) dilui o poder de compra do dinheiro existente, tornando as pessoas cada vez mais pobres.
Esse gráfico acima é o poder de compra de 1 Real em 1994, trazido a valor presente.
A inflação não é culpa do empresário malvado. A inflação é culpa exclusivamente do governo gastador e da diluição do valor do dinheiro existente (lembra a água no feijão?).
O conceito de Superavit primário já foi criado para facilitar enormemente a vida dos governos para poderem contornar a gastança deliberadamente, e ainda assim, com toda essa chance, entregaremos Déficit primário em 2024, ou seja, estamos condenados. É prejuízo mesmo na conta café com leite.
A realidade é um Déficit nominal (esse sim verdadeiro, incluindo juros) de mais de RR 1.1 Trilhão de Reais em 12 meses. R$ 1.100.000.000.000,00 que serão impressos, sem uma alternativa, diluindo seu patrimônio, sua poupança e sua aposentadoria e gerando inflação no seu dia a dia.
O poder de compra do real (aquele gráfico anterior) vai acelerar sua deterioração. Não existe juro real sendo pago no Brasil, nem os EUA, nem em lugar nenhum do planeta. Quando você “investe” em IPCA+ você está sendo iludido, estão passando a mão na sua bunda.
Repetindo de outra forma, para imprimir e expandir continuamente a base monetária, os governos te iludem fazendo você acreditar que está ganhando juro real sobre o limite que você concede a ele.
Expliquei com o exemplo lúdico do cartão de crédito, te entreguei números do Brasil por serem pequenos e irrelevantes, mas o núcleo do problema está na mãe de todas as economias, a dos EUA, onde o buraco é muito mais embaixo.
Se você entendeu o texto de hoje, saiba que, à exceção de eventuais riscos tecnológicos, a única chance do preço do Bitcoin colapsar são os governos entregarem superávits reais, em que receitas menos despesas cubram o custo do governo e no mínimo, a parcela de juros das dívidas.
Não existe, sem uma ruptura (WWIII ou algo do tipo), a menor possibilidade disso acontecer nas próximas décadas.
Esse assunto deveria ser corriqueiro, o monitoramento da trajetória das dívidas e a expansão da base monetária deveriam ser noticiadas diariamente assim como a cotação do dólar, por exemplo, mas não são.
Pelo contrário, te vendem títulos do governo como seguros e pagantes de “juro real” e a moedinha laranja como sendo arriscada por ser volátil ao passo que a verdade é que ela é a sua segurança quando todos os caminhos levam a inevitável inflação de todos os preços.